Bertran de Born, condenado a ter a cabeça separada do corpo para sempre, por ter causado a separação de pai e filho. Ilustração de Gustave Doré (séc XIX). |
Canto I
A selva escura - As feras - O espírito de Virgílio
Quando
eu me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me vi perdido em
uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o caminho certo. Ah,
como é difícil descrevê-la! Aquela selva era tão selvagem, cruel,
amarga, que a sua simples lembrança me traz de volta o medo. Creio que
nem mesmo a morte poderia ser tão terrível. Mas, para que eu possa falar
do bem que dali resultou, terei antes que falar de outras coisas, que
do bem, passam longe.
Eu não sei como fui parar naquele lugar
sombrio. Sonolento como eu estava, devo ter cochilado e por isso me
afastei da via verdadeira. Mas, ao chegar ao pé de um monte onde
começava a selva que se estendia vale abaixo, olhei para cima e vi
aquela ladeira coberta com os primeiros raios do sol. A cena trouxe luz à
minha vida, afastou de vez o medo e me deu novas esperanças. Decidi
então subir aquele monte. Olhei para trás uma última vez, para aquela
selva que nunca deixara uma alma viva escapar, descansei um pouco, e
depois, iniciei a escalada.
Dante perdido na selva escura. Ilustração de Gustave Doré (séc XIX). |
Eu havia dado poucos passos, quando, de
repente, saltou à minha frente um ágil e alegre leopardo. Astuto, de
pêlos manchados, de todas as formas ele impedia que eu seguisse adiante.
Não adiantava desviar ou buscar um outro caminho pois no final, ele
sempre estava lá, bloqueando a minha passagem. Várias vezes tentei
vencê-lo. Várias vezes falhei.
O dia já raiava e o sol nascia com aquelas
mesmas estrelas que acompanharam o mundo no seu primeiro dia. A luz e a
claridade daquele dia especial renovaram minhas esperanças, e me
fizeram acreditar que iria conseguir vencer aquela fera malhada.
Mas a minha esperança durou pouco e o medo
retornou quando vi surgir, diante de mim, um leão. Ele parecia avançar
na minha direção, com a cabeça erguida, tão faminto e raivoso que até o
próprio ar parecia temê-lo. E depois veio uma loba, magra e cobiçosa,
cuja visão tornou minha alma tão pesada, pelo medo que me possuiu, que
não vi mais esperança alguma na escalada. A loba avançava, lentamente, e
me fazia descer, me empurrando de volta para aquele lugar onde a luz do
Sol não entra.
Quando eu já me encontrava na beira
daquele vale escuro, meus olhos aos poucos perceberam um vulto que se
aproximava, que apagado estivera, talvez por excessivo silêncio.
- Tenha piedade de mim - gritei ao vê-lo - quem quer que sejas, sombra ou homem vivo!
- Homem não mais - respondeu o vulto -,
homem eu fui um dia. Nasci em Mântua, nos tempos de Júlio César e vivi
em Roma no império de Augusto. Fui poeta e narrei a odisséia de Enéas,
que fugiu de Tróia depois do incêndio. E tu, por que não sobes o
precioso monte, princípio e causa de toda glória?
- Tu és Virgílio?
- perguntei, vergonhoso - Ora, tu és meu mestre e meu autor predileto!
Foi contigo que aprendi o belo estilo poético que me deu louvor. Eu não
subi o monte por causa dessa fera. Ela me faz tremer os pulsos.
Ajuda-me, sábio famoso! Ajuda-me a enfrentá-la!
- A ti convém seguir outra viagem -
respondeu o poeta, ao me ver lacrimejando - pois essa fera, essa loba, é
a mais feroz e insaciável de todas. Ela só partirá quando finalmente
vier oLebreiro que
para ela será a dura morte. Ele não se alimentará nem de dinheiro, nem
de terras; só a sua sabedoria, amor e virtude poderão nutri-lo. Ele virá
para salvar a tua Itália caída. Ele irá caçar essa fera em todas as
cidades até encontrá-la, quando então a matará e a conduzirá de volta ao
inferno, de onde a Inveja, primeiro a trouxe para este mundo.
Depois, me fez uma proposta:
- Eu acho melhor, para teu bem, que me
sigas. Eu serei o teu guia. Te levarei para um lugar eterno onde verás
condenados gritando, em vão, por uma segunda chance. Depois verás outros
que sofrem contentes no fogo, pois têm esperança de um dia seguir ao
encontro daquela gente abençoada. E depois, se quiseres subir ao céu, lá
terás alma mais digna do que eu, pois o imperador daquele reino me nega
a entrada, pois à sua lei eu fui rebelde.
- Poeta - respondi -, eu te imploro, em
nome desse Deus que não conheceste, que me ajudes a fugir deste mal ou
de outro pior. Eu te seguirei a esses lugares que descreveste. Que eu
possa ver a porta de São Pedro e os tristes sofredores dos quais
falaste!
Ele então moveu-se, e eu o acompanhei.FONTE:STELLE.COM
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